Reportagem sobre os Tapetes de Arraiolos
Com lã se cose a tradição
Tapetes de Arraiolos
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Bordada com cores e sol, a vila de Arraiolos dá nome aos tapetes que em si trazem as mãos deste pedaço do Alentejo que, posto no cimo do monte, deixa ver o país para lá da fronteira. Na sua praça central contornada por casas azuis e brancas, a calçada também parece feita com agulha e dedal. De pedra, estende-se o tapete de Arraiolos que convida a conhecer o novelo de histórias que fazem desta arte um sinónimo da palavra “Portugal”. Nas palavras de Rui Lobo, historiador e responsável técnico pelo Centro Interpretativo do tapete de Arraiolos, museu de tutela municipal, “quando falamos nesta arte e na sua evolução, acabamos por encontrar momentos da História de Portugal. Ou seja, viajamos pela História do nosso país”.
Também este espaço, nascido de um projeto de Diogo Burnay e Cristina Veríssimo, inaugurado em 2013 e premiado em diversos contextos, conduz quem chega num passeio por tudo quanto o passado guarda em tapetes que, mesmo não sendo voadores, levam tão longe quem os olha. É, segundo Rui Lobo, “uma expressão artística de cariz artesanal. É uma das mais importantes expressões portuguesas da arte decorativa. E, para além das pessoas que envolve, tem também uma importante componente artística”. Por isso, aqui pretende-se “mostrar a história, as técnicas, os materiais e a evolução decorativa do tapete de Arraiolos. Para além, obviamente, de ser palco de outras iniciativas ligadas à salvaguarda e valorização do tapete de Arraiolos”.
E, sob este edifício, bem pode morar o início de uma história que ainda hoje se vai escrevendo e contando, na ânsia de não ser esquecida. “Ao longo de toda a praça, existe um complexo tintureiro que se instalou em Arraiolos e que esteve ativo entre os séculos XIII e XV, ou seja, é anterior à construção do edifício. É semelhante ao que existe em Fez. Teria características árabes. No entanto, tudo isto é anterior à produção de tapete de Arraiolos, mas pode ter contribuído para o seu início. A mais antiga referência documental ao tapete de Arraiolos é de 1598, século XVI. Os exemplares mais antigos que chegaram aos nossos dias são do século XVII. E o complexo esteve ativo entre os séculos XIII e XV. Temos aqui um hiato de 100 anos. Sabe-se que, em Lisboa, nos séculos XIV e XV, na comuna muçulmana de Lisboa, havia tapeteiros. Depois, em 1496, surge um decreto manuelino de conversão ou expulsão das minorias religiosas. Ou seja, quem não fosse cristão e não se quisesse converter, tinha que sair do nosso país. Pensamos que alguns desses tapeteiros de Lisboa, sobre os quais não há qualquer referência após 1496, ter-se- -ão convertido ao cristianismo, tendo vindo para Arraiolos por duas razões: o conhecimento prévio que tinham da existência desta tinturaria – um local perfeito para continuarem a produzir - e para sua defesa e salvaguarda”.
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Hoje, dentro destas paredes erguidas sobre o passado, guardam-se tapetes de vários tempos e que, restaurados no que se considerou essencial, retratam as várias etapas: o orientalismo, a transição, a arte popular e o ressurgimento. À medida que esta arte se foi tornando menos marcada pelas tendências orientais, mais popular, mais próxima, foi exibindo a sua beleza em formatos mais reduzidos, capazes de caber em casas que não apenas as da elite. Um tempo que, deixando a luz espreitar, viu as cores perderem força sem que se desconfiasse disso quando, em pleno século XX, se tentou recuperar a produção do tapete de Arraiolos: “Há uns anos, começaram a ser feitas análises químicas no laboratório Hércules, em Évora, a alguns tapetes do Museu de Arte Antiga. E chegou-se à conclusão que as cores tinham sofrido profunda alteração. Os tapetes, expostos à luz, vão perdendo a cor. No início do século XX, as tapeteiras, numa época em que nasceu um movimento denominado ressurgimento do tapete de Arraiolos, após a sua quase extinção, procuraram recuperar os desenhos antigos. Nessa altura, chegou a ocorrer uma exposição no Convento do Carmo. Daí muitos tapetes terem estas tonalidades mais claras e os fundos brancos, quando não era assim no início. Contudo, foi nos tapetes mais antigos e já com as cores esbatidas que as tapeteiras basearam o seu trabalho”. E é isso que revela o outro lado de um tapete, onde a luz não chegou e deixou a cor ficar, fruto ainda do tingimento com corantes naturais como os lírios tintureiros, o trovisco, o pau campestre, o pau-brasil, o anil, a garança e a cochinilha que faziam surgir, entre outras, vermelhos garridos e laranjas quentes.
Também a tela, que hoje imaginamos pesada e grosseira, já foi feita de outro material que nascia em teares: “As telas dos tapetes mais antigos eram feitas em linho. Nesta tela, os tapetes demoravam mais a ser feitos e obrigavam a recorrer a um esquema diferente. O ponto de Arraiolos servia apenas para preencher. Os tapetes do séc. XVII são feitos com tela em linho, com os elementos decorativos contornados a ponto pé de flor e servindo o ponto de Arraiolos para preencher. Já na tela em serapilheira, mais comum na atualidade, o ponto segue sempre na mesma direção, sendo mais rápida a sua produção. E outros materiais foram usados até chegarmos à serapilheira”. Uma atividade que se seguia a uma cadeia também aqui ilustrada para que não se esqueça. “Falamos do antigo processo de tratamento da lã: o pastoreio, a tosquia, o momento em que tinha que se carmear, ou seja, retirar as impurezas que vinham na lã, a cardação, que era um trabalho feito por homens com as cardas, para se esticar a lã de forma a ficar pronta para a roda de fiar que era onde tomava a forma de fios de lã. Aí era dobada e tingida. Só depois era passada para as bordadeiras”. Um caminho abreviado, mas que continua a terminar nas mesmas mãos que ajudam a vista a contar as casas ocupadas no esquema em tamanho real que acompanha cada etapa.
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Cada cruz, um ponto. Cada número, uma cor. E, cortada a largura e o comprimento, há que encontrar o centro. A simetria, contrariando as raízes que parecem tão evidentes nos elementos decorativos, dita o início e o primeiro ponto acontece numa tela que todos os dias se preenche graças à persistência de quem gosta do que faz, fazendo-o com o coração no lugar da agulha, numa terra que deu nome à arte e onde também os tapetes têm nomes entre quem melhor os conhece. Deolinda do Carmo ou, simplesmente, D. Deolinda, com as pernas cobertas por um longo pedaço de serapilheira que virá a ser uma réplica de um tapete do século XVII, sem tirar os olhos do seu trabalho e puxando a lã azul sem hesitações, sabe-os bem. São já 45 anos. “Via a minha mãe, as avós, as tias… Todas faziam tapetes de Arraiolos e eu quis aprender também. Embora tenha trabalhado noutras áreas, nunca deixei de fazer Arraiolos”. Hoje, no centro interpretativo, faz parte do espólio: ela, o seu dom, as suas obras e o que vai ensinando a quem passa e a quem, contagiado, opta por ficar ali sentado, a olhar sem pressa. “Aqui vemos pessoas novas todos os dias, que vão fazendo perguntas e gostando de me ver trabalhar.” Com o sotaque alentejano, as mãos calejadas, as costas cansadas e o rosto feliz. Assim ia avançando no enchimento. “A parte mais fácil”, diz. “Depois é a barra. Mas armar o desenho é o mais difícil. E este não é simétrico, tem pequenas diferenças. Tenho que ir contando. Estamos a falar de trabalhos que levam meses. E quando há enganos… Começa logo a tesoura a trabalhar”, remata. Mas o fim só chega com a colocação da franja que, cosida com fio de carreto, é feita com recurso a um banco próprio e segundo regras que só não determinam o ritmo com que as linhas se cruzam ao sabor de uma experiência que faz parecer simples. “A franja tem sempre a cor do fundo do campo. E as cores usadas para fazer o que se chama a cairela são as mesmas dos motivos do campo. São metros por hora…”
Motivo de orgulho nacional, o tapete de Arraiolos está agora a atravessar um processo que permitirá a sua candidatura a património imaterial da UNESCO. O futuro passará por esse reconhecimento e pela garantia de condições que possibilitem a certificação das peças e de um trabalho que não pode ser medido em m2 . Segundo Rui Lobo, só assim, sem negar a inovação, se poderá continuar a contar, em tapetes, a História do país e de todos aqueles cuja vida, ponto a ponto, foi acontecendo ao ritmo dos novelos que se vão gastando, de agulha na mão e serapilheira no colo. Como a vida da D. Deolinda. “E eu vou ter que continuar ligada a isto. Por gosto. Quando uma pessoa aprende e faz durante muitos anos, não esquece. E não deixa de gostar.”
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