Reportagem sobre "Direito ao Amor"
Direito ao amor
Até 1982, era considerado um crime segundo o Código Penal. Depois, até 1990, uma doença. Em 2004, passa a constar na Constituição da República Portuguesa. “Atração romântica ou interesse sexual por pessoas do mesmo sexo.” Assim se define em palavras. Mas será ainda preciso explicar o que é a homossexualidade? De acordo com Joana Cadete Pires, Vice-Presidente da Associação ILGA Portugal (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo), nem por isso. “Eu acho que explicar talvez já não seja necessário. Agora, de uma coisa estou certa: ainda há pela frente muito trabalho de desconstrução por fazer junto da sociedade. Isso é fundamental.
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Tal como no amor, também aqui esqueçamos as regras e comecemos, então, pelo fim. Comecemos pelo que ainda falta fazer numa sociedade que, por vezes, não se sabe se já terá saído do armário. “Temos de trabalhar numa efetiva mudança da mentalidade da nossa sociedade. Essa é a grande luta que temos para o futuro. Queremos que as pessoas queiram usufruir dos direitos que lhes estão garantidos por lei. Queremos que as pessoas não tenham medo de casar, seja na conservatória de Lisboa ou noutra qualquer. Queremos que as pessoas não sejam discriminadas no acesso à adoção. Queremos, no fundo, que as pessoas construam o seu projeto de vida sem se sentirem discriminadas”, explica a representante da ILGA Portugal. Rita acrescenta: “Neste momento é imperativo que a lei acompanhe as necessidades de todos.” A mudança de mentalidades não é legislável, nem passível de imposição. Acontece, simplesmente, e, embora permeável ao efeito das mudanças legislativas, também acaba por estar nas entrelinhas da lei escrita pela história dos dias. É um caminho. Longo e que se percorre de mãos dadas, lado a lado. “Muitas vezes perguntam-nos o que é que deve vir primeiro: a lei ou a mudança de mentalidade. O que a ILGA Portugal tem defendido é que a mudança legislativa representa um impulso muito importante na mudança de mentalidade. É o próprio Estado a dizer que não se pode discriminar”, reforça Joana Cadete Pires.
Tiago olha para Portugal do lado de lá da fronteira, através da janela que se abre para os que, vivendo fora, continuam a sentir este país como o seu. “Em Portugal, primeiro construímos as leis e, depois, promovemos a consciencialização da população. Na Alemanha, primeiro veio a consciencialização da população, sente-se que a homossexualidade é aceite e é vista como algo mais natural e simples. No entanto, só em 2017 é que aprovaram o casamento por pessoas do mesmo sexo! Qual dos caminhos é o correto? Não sei responder. O importante é que se chegue ao mesmo resultado, não interessa o caminho.”
Neste caminho, cada passo representa uma conquista. Em 2003, com leis antidiscriminatórias no Código de Trabalho. Em 2007, com a criminalização da homofobia. Em 2010, com a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo. E assim se avança, na certeza de não haver uma meta estanque. Por isso importa garantir que não há retrocessos. “As leis estão a ser cumpridas. Salvo raras exceções, não temos conhecimento de que a lei não esteja a ser cumprida. Em relação à lei da identidade de género, sendo esta também a mais recente, houve a necessidade de fazer um trabalho mais próximo das conservatórias, visando garantir que os procedimentos e as mentalidades sofressem alterações. Aí sim, pontualmente, existem certas conservatórias que continuam a dificultar. Em relação ao casamento, tudo está a ser cumprido”, afirma Joana Cadete Pires. “A discriminação no trabalho é uma das grandes matérias que a ILGA Portugal vai abordar ao longo dos próximos anos. Temos estado diretamente envolvidos em vários projetos relacionados com essa temática. Aquilo que dizemos é que o local de trabalho tornou-se o segundo grande armário. As pessoas LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo) saem do armário junto das famílias, junto das pessoas amigas e, depois, ingressam no mercado de trabalho e voltam a ficar trancadas no armário.”
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A história de Rita é feita destes armários. Depois de sair de um armário e de, após algum tempo, ser aceite pela sua família, fechou-se noutro armário: o do local de trabalho. “Os obstáculos são, sem dúvida, resultantes de um preconceito ainda presente na sociedade. Por exemplo, no meu local de trabalho não falo abertamente nem da minha namorada, nem da minha relação.” Resta saber como se poderá destrancar, de vez, estes armários que ainda prendem a felicidade de tantos. “Há duas maneiras de olhar para esta situação: por um lado, as próprias pessoas têm de ganhar essa coragem. Claro que não é fácil. O nosso emprego é o local onde passamos a maior parte do tempo. Por outro lado, as próprias entidades empregadoras podem desenvolver um trabalho junto da comunidade LGBTI. E isso não passa pela alteração legislativa. O código de trabalho é claríssimo quanto à discriminação em função da orientação sexual e identidade de género. As entidades empregadoras têm um papel muito importante e podem contribuir de forma decisiva para uma alteração de mentalidades. Por exemplo, algumas empresas têm regulamentos internos nos quais está expressamente definida a proibição de todas as formas de discriminação”, reforça a Vice-Presidente da ILGA Portugal.
A Constituição da República Portuguesa, no número dois do seu artigo décimo terceiro, é clara: “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.” Mas será assim em todo o país? Para Diana, há diferenças entre as grandes e as pequenas cidades de um país que, apesar das curtas distâncias, guarda em si muitas diferenças. “Penso que, nas grandes cidades de Portugal, a convivência com a diversidade é mais comum e acaba por haver mais contacto com o que é diferente. Isso vai proporcionar experiências capazes de moldar opiniões e valores.” Tiago concorda e acrescenta que “nunca vamos ter a real noção do que se passa fora do Porto ou de Lisboa. Há muito trabalho para fazer nas grandes cidades, mas há muito mais para todo o resto de Portugal, onde o preconceito ainda é muito visível. Acredito que a educação é fundamental nesta mudança de mentalidades”.
Não se aprende nos livros e não se ensina em tom de tabuada. No entanto, acredita-se que “a escola tem uma palavra a dizer na construção de um futuro diferente. A escola deve ser um local de segurança para todas as crianças, independentemente da sua orientação sexual, identidade, expressão de género ou características sexuais. Deve ser um espaço de segurança, mas também um espaço de mudança e aprendizagem. As pessoas docentes e não docentes têm um papel fundamental no cumprimento dessa missão e devem assumi-lo frontalmente”, explica Joana Cadete Pires.
Por isso, a educação pode ser parte da solução para um problema alicerçado no preconceito. Tiago tem uma explicação para isso: “Vivemos numa sociedade heteronormativa. Nos filmes, a princesa casa com o príncipe, a donzela em apuros é resgatada pelo herói e, desde cedo, se és rapaz, vais ouvir a pergunta: ‘então e namoradas?’”. Rita complementa esta ideia, considerando que o preconceito é ainda mais violento quando se trata de um homem: “Sinto que possa ser ainda mais difícil para um homem ser homossexual. Vivemos numa sociedade ainda muito machista, sem dúvida. Um homem que seja homossexual vai contra tudo o que é esperado para um homem.” Tiago contrapõe: “Eu acho exatamente o contrário. Há sempre mais desafios para as mulheres, porque há menos representação, menos voz. E também porque há expetativas muito maiores no que diz respeito ao seu futuro enquanto mãe e em relação ao lugar de uma mulher numa família.” Diana conclui dizendo que “o principal obstáculo é o medo, principalmente o medo do preconceito de que posso vir a ser alvo por alguma atitude minha que não se enquadre”.
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Tal como o caminho e as suas metas, também a missão da ILGA Portugal se reinventa e renova a cada instante. Contudo, permanece fiel à certeza de que não há espaço para o preconceito numa sociedade igualitária. Torna-se então fundamental não deixar adormecer os objetivos que justificam e motivam cada nova ação. “É importante percebermos que só em 2016 é que assistimos à chegada das nossas grandes conquistas em matéria de parentalidade. Ou seja, em 2010 o casamento entre pessoas do mesmo sexo é aprovado e só seis anos depois é que ocorre a aprovação da adoção por casais do mesmo sexo e a procriação medicamente assistida.” Conscientes de que estas grandes mudanças ajudam a contar a história de uma luta que permanece atual, é certo que o preconceito perde muitas vezes força graças a pequenas vitórias que, propositadamente, passam despercebidas. “Por exemplo, os nomes que nós damos às coisas têm significado. Daí a nossa luta pelo nome casamento. Não deve existir diferença no nome consoante estejamos a falar de um casamento entre pessoas de sexo diferente ou de um casamento entre pessoas do mesmo sexo. Jamais iríamos chamar outra coisa. Nós queremos um casamento.”
E agora, em que lugar estamos nesta caminhada? Tiago acredita “que atravessamos uma fase de educação. Uma fase em que todos os portugueses podem ter acesso a informação sobre a comunidade LGBTI, não só por causa das novelas, dos filmes e das personagens famosas, mas também porque há mais pessoas que decidem sair do armário e com quem convivem no seu dia a dia”. Uma convivência que, passando a ser normal, é, segundo a Vice-Presidente da ILGA Portugal, muito importante: “A visibilidade é fundamental para a mudança. Lembro-me bem da altura em que se falou do coming out da Graça Fonseca ou do Adolfo Mesquita Nunes. A mensagem que transmitem é importante. Aquela criança que ainda não se assumiu percebe que o pode fazer e que não terá que ser discriminada por isso. Ou seja, que não é a sua orientação sexual que a diminui ou que a vai limitar.”
Sabendo que o presente é volátil e que os passos continuam a ser dados, talvez possamos então acreditar que tudo estará bem quando não mais for preciso alguém assumir qual a sua forma de amar. Quando todos tiverem direito à “indiferença”. Quando todos couberem dentro da palavra amor, sem inquérito, nem julgamento. Quando, nas palavras de Joana Cadete Pires, “for absolutamente indiferente as pessoas saberem, ou não, quem é que aquela pessoa ali ao lado é ou ama. Eu não sei se tudo ficará bem nesse dia, mas não tenho dúvidas de que, quando a orientação sexual for tratada apenas como amor, teremos uma sociedade melhor”. Uma sociedade em que amar será, de facto, um direito ao alcance de todos.
LEGISLAÇÃO
Por Tânia Piazentin, Jurista
A Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, que adota medidas de proteção das uniões de facto, confere proteção legal aos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo, nos mesmos moldes em que é conferida aos relacionamentos entre pessoas de sexo diferente. As pessoas que, independentemente do seu sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos podem beneficiar, nos termos previstos na lei, de um conjunto de direitos em matéria, nomeadamente, de proteção da casa de morada de família, laboral, fiscal e de proteção social. Existem ainda, dispersas por vários diplomas, disposições legais que consagram direitos às pessoas que vivam em situação de união de facto (ex: artigo 100.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, relativo ao reagrupamento familiar; artigo 113.º, n.º 2, al. a) do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, relativo ao direito de queixa).
A Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, veio permitir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (até então reservado a pessoas de sexo diferente), alterando o Código Civil em conformidade.
A Lei n.º 2/2016, de 29 de fevereiro, eliminou as discriminações no acesso à adoção, apadrinhamento civil e demais relações jurídicas familiares, procedendo à segunda alteração à Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, à primeira alteração à Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, à vigésima terceira alteração ao Código do Registo Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 131/95, de 6 de junho e à primeira alteração do Decreto-Lei n.º 121/2010, de 27 de outubro.
Com a alteração introduzida pela Lei n.º 17/2016, de 20 de junho, à Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, passa a admitir-se a possibilidade de recurso às técnicas de procriação medicamente assistida aos casais de mulheres casadas ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges, bem como todas as mulheres independentemente do estado civil e da respetiva orientação sexual.
Enquanto reflexo do princípio constitucional da igualdade, na sua vertente da não discriminação em razão da orientação sexual (cf. artigo 13.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), encontram-se previstas ainda, em diferentes domínios e com níveis de tutela jurídica distintos, disposições legais de proteção do direito à igualdade e de não discriminação, em razão, nomeadamente, da orientação sexual. São disso exemplo o artigo 1067.º-A do Código Civil, aditado pela Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, que consagra normas de não discriminação no acesso ao arrendamento; o artigo 24.º do Código do Trabalho (aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro), que estabelece como contraordenação muito grave, sujeita à aplicação de coima, a violação das normas que consagram o direito à igualdade no acesso ao emprego e no trabalho, que possa resultar de discriminação do candidato ao emprego ou do trabalhador em função da sua orientação sexual; os artigos 121.º (Homicídio qualificado) e 240.º (Discriminação e incitamento ao ódio e à violência) do Código Penal, que tipificam determinados comportamentos praticados por motivos relacionados com a orientação sexual das pessoas como ilícitos criminais, puníveis com pena de prisão.
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