Entrevista a José Soreto de Barros, Presidente da Comissão Nacional de Eleições
“É necessário dar à família, à escola e à comunidade, a capacidade de educar para a vida em sociedade”
José Soreto de Barros, Presidente da Comissão Nacional de Eleições
É o órgão superior da administração eleitoral. Independente, funciona junto da Assembleia da República e tem competência para disciplinar e fiscalizar todos os atos de recenseamento e operações eleitorais para órgãos eletivos de soberania, das regiões autónomas, do poder local e para o Parlamento Europeu. Garante da igualdade de tratamento e de oportunidades no mais importante ato da democracia, é, portanto, para todos nós e por todos nós que a Comissão Nacional de Eleições (CNE) trabalha. Fechado mais um capítulo da atual comissão, e com as recentes eleições legislativas a trazerem de novo à discussão a problemática da crescente abstenção, fomos falar com o Presidente da CNE. Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, o Juiz Conselheiro José Vítor Soreto de Barros recorda que o bem-estar pessoal e social não é atingível em egocentrismo e que a abstenção radica em deficiente consciência cívica. Por isso, é necessário reforçar a confiança entre eleitores e eleitos e é exigível que os cidadãos vão fazendo o acompanhamento crítico do desempenho dos eleitos.
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Quais as competências da Comissão Nacional de Eleições (CNE)?
A CNE tem três atribuições, que a Lei chama competências: promover o esclarecimento objetivo dos cidadãos acerca dos atos eleitorais, designadamente através dos meios de comunicação social; assegurar a igualdade de tratamento dos cidadãos em todos os atos do recenseamento e operações eleitorais; e assegurar a igualdade de oportunidades de ação e propaganda das candidaturas durante as campanhas eleitorais. Para concretizar estas atribuições, a Lei dá à CNE os poderes necessários sobre todos os órgãos e agentes da administração.
Na prática, estamos em presença de competências de supervisão e que, por isso mesmo, não são típicas da atividade administrativa. Aliás, são competências sobrepostas às competências próprias dos diferentes órgãos e agentes da administração e, por isso mesmo, fora do âmbito da aplicação direta do princípio da especialidade das competências administrativas.
Um exemplo que pode ilustrar esta lógica pouco comum é o que se relaciona com o recenseamento eleitoral: a CNE não pratica nenhum ato no processo de recenseamento eleitoral – são o órgão competente da administração pública tutelada pelo governo e as comissões recenseadoras que o fazem –, mas pode e deve ordenar a esses órgãos que cessem certos comportamentos ou atuem de certa forma se estiver em causa a igualdade de tratamento dos cidadãos.
Sendo assim, a CNE não tem nenhuma competência concreta, algo que só ela faça e mais ninguém possa fazer?
Claro que tem. Algumas previstas na Lei da CNE e outras dispersas nas leis eleitorais e em outros diplomas complementares.
No primeiro caso está, por exemplo, a competência para decidir de recursos hierárquicos em matéria de distribuição de salas para a campanha eleitoral. Ou, mais geral ainda, a de aprovar o mapa-calendário das operações eleitorais, fixando as datas em que os diversos atos a praticar por juízes e serviços da administração pública devem ocorrer.
Num processo eleitoral, os prazos são curtos e os atos encadeados, pelo que não é possível deixar a critérios diferentes a contagem de prazos sem comprometer todo o processo – o legislador optou por confiar à CNE a contagem de todos os prazos com força obrigatória geral.
Outras competências são, por exemplo, as que se prendem com a realização de campanhas de esclarecimento dos cidadãos ou a organização dos tempos de antena ou, ainda, a de mandar publicar em Diário da República o mapa da eleição, com resultados da votação e eleitos proclamados, previstas em todas leis eleitorais.
Um dos pilares da CNE é o esclarecimento dos cidadãos sobre a natureza do ato eleitoral. Acha que os cidadãos entendem a sua participação como um direito, mas também como um dever?
Globalmente não temos razões para pensar que não entendem de uma forma ou de outra ou até, em boa parte dos casos, simultaneamente das duas formas. A participação cívica não é tão baixa como os números, sem outra reflexão, podem fazer crer – a nossa taxa de abstenção é inflacionada por diversos fatores, um deles a distorção significativa do número de eleitores face ao número de residentes com 18 ou mais anos: estes são cerca de 8,5 milhões e os recenseados no país são 9,3 milhões.
Esta diferença explica sete por cento da abstenção e, portanto, do que, à primeira vista, poderia passar por desinteresse.
Considera que o cidadão médio compreende em pleno o funcionamento do sistema eleitoral, designadamente a representação proporcional?
Não sei responder. Aliás, há mesmo cidadãos com qualificações acima da média que, a fazer fé em declarações públicas que proferem, também não compreendem muito bem o sistema e compreendem ainda menos o próprio processo eleitoral.
Quanto ao conceito de representação proporcional creio que é entendível. Mas há aqui uma subtileza. A conversão de votos em mandatos faz-se de acordo com o sistema de representação proporcional, sim, mas segundo o método da média mais alta de Hondt. E, aqui, a fórmula do cálculo da conversão, apesar de simples, pode não ser acessível a todos.
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Uma das atividades da CNE diz respeito ao apelo ao voto. Que iniciativas foram levadas a cabo neste ano e de que forma cumpriram o seu propósito na luta contra a abstenção?
Não será propriamente à CNE que cabe apelar à participação dos cidadãos nas eleições – esse é um objetivo instrumental, mas nuclear, dos candidatos e das candidaturas. Neste domínio, à CNE cabe esclarecer os cidadãos sobre o que está em causa em cada ato eleitoral e, adicionalmente, sobre os seus direitos e a forma de os concretizarem. Claro que, desta forma, se promove, ainda que indiretamente, a participação dos cidadãos.
Através do seu sítio na Internet, com abundante informação sobre os diversos atos eleitorais e as regras e procedimentos a seguir em matéria eleitoral e, até por determinação das próprias leis eleitorais, da realização de campanhas de esclarecimento cívico, que decorrem em vários órgãos de comunicação social, redes sociais, rede multibanco e outros meios, a CNE tenta concretizar esta sua missão.
Adicionalmente, apoia estudos científicos e ações específicas em escolas e outras comunidades com vista ao esclarecimento e promoção da participação.
Na sua opinião, quais os fatores que mais contribuem para a abstenção e que medidas poderiam ser tomadas no sentido de travá-la?
Há de haver fatores de natureza diversa, que requereriam uma abordagem aprofundada, de que não disponho. Posso considerar, em suma, que a abstenção radica em deficiente consciência cívica. O direito de sufrágio constitui um dever cívico, como se disse. Não está em causa tornar o voto obrigatório ou adotar um qualquer tipo de sancionamento. Mas os números da abstenção, apesar do empolamento, tornaram-se graves de mais para serem abordados apenas no rescaldo da noite eleitoral. Para quem entenda que votar é um bem, tem que concluir que há de haver uma explicação mais profunda e duradoura para esta aparente indiferença pelo funcionamento das instituições democráticas e, de passada, pelo ressentimento contra “os políticos”.
Enfim: penso que será necessário dar à família, à escola e à comunidade, a capacidade de educar para a vida em sociedade, de forma responsável, participativa e solidária; será preciso afirmar que o bem-estar pessoal e social não é atingível em egocentrismo; que ninguém é dispensável e que a realização pessoal só é possível em relação. E é claro que isto não dispensa que, entretanto, se pondere a oportunidade de melhorar as condições de participação eleitoral. E é também exigível que os cidadãos vão fazendo o acompanhamento crítico do desempenho dos eleitos, face aos compromissos assumidos. Em suma, reforçar a confiança entre eleitores e eleitos.
Quantas queixas recebeu a CNE este ano? A que se reporta a maioria e qual a sua origem?
Na sequência das queixas recebidas, no âmbito da eleição para o Parlamento Europeu, foram abertos 463 processos, cuja iniciativa foi maioritariamente dos cidadãos (294) e dos órgãos das autarquias locais (59). Quanto às eleições regionais para a Assembleia Legislativa da Madeira e para a Assembleia da República, contabilizam-se, à presente data, respetivamente, 114 e 343 queixas que deram origem à abertura dos correspondentes processos, sendo a sua maioria da iniciativa dos cidadãos (90 na primeira, 251 na segunda). Acrescem a estes dados os pedidos de esclarecimento que recebe diariamente e que, no total dos três processos eleitorais em causa, ascendem a cerca de dez mil.
A CNE pode instaurar e decidir sobre que tipo de processos de contraordenação?
A CNE pode aplicar coimas às estações de rádio e televisão por violação das regras relativas ao direito de antena e a sondagens em dia de ato eleitoral ou referendário, bem como aplicar as coimas correspondentes a contraordenações praticadas por partidos políticos, coligações ou grupos de cidadãos, por empresas de comunicação social, de publicidade, de sondagens ou proprietárias de salas de espetáculos, em eleições autárquicas e nos referendos (nacional e local).
A CNE pode aplicar coimas a quem promover, bem como a empresa que fizer propaganda através de meios de publicidade comercial.
A aplicação de penas em matéria de propaganda compete aos tribunais. Considera que, face à conhecida sobrecarga de trabalho dos mesmos, têm capacidade efetiva para garantir o cumprimento das leis?
Claro que há ilícitos no domínio das atividades de propaganda que são criminais e, por isso, apenas os tribunais podem julgar e punir, se for caso disso.
Porém, salvo lei especial em contrário, os tribunais só intervêm nas contraordenações quando associadas a um processo-crime ou em sede de recurso de uma decisão administrativa.
E uma leitura apressada da lei que temos pode levar a que se pense que esse poder é conferido aos presidentes de câmara, mas a Constituição proíbe-o – só os tribunais e entidades independentes podem aplicar penas no que toca a matéria de direitos, liberdades e garantias. E não há lei que dê poderes neste domínio a nenhuma entidade independente, CNE incluída.
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Em última instância, quem controla a legalidade dos atos do processo eleitoral?
Cabe ao Tribunal Constitucional controlar, em última instância, a legalidade dos atos do processo eleitoral, com a exceção pontual da fixação dos locais de funcionamento das secções de voto e das provas tipográficas do boletim de voto (este apenas nas eleições autárquicas), em que intervêm os tribunais comuns.
Que impacto têm fenómenos como a globalização, o mundo digital e as “fake news” na propaganda e na perceção que os cidadãos têm da mesma?
Cingindo-me à experiência no seio da CNE, notam-se impactos, mas não dominantes ou decisivos. Sem estudos prévios nem reflexão sistemática, posso referir-lhe um certo incremento da inobservância das regras que proíbem a utilização de meios de publicidade comercial para fazer propaganda ou de desrespeito pela proibição de propaganda na véspera e no dia da eleição.
Já quanto às “fake news”, só num caso, que me recorde, houve lugar à intervenção da CNE.
Portugal tem sido um país pioneiro na europa na adoção de muitas medidas de modernização administrativa. No entanto, o mesmo ainda não é verdade na adoção do voto eletrónico. Que vantagens e desvantagens lhe estão associadas?
Primeiro, permita-me que acentue o facto de o voto eletrónico não ser uma opção tão disseminada quanto as notícias sobre ele fazem crer. Em particular o voto eletrónico em mobilidade. O país campeão desta última modalidade, a Estónia, ao fim de anos de experiência consolidada fica-se por uns 30 por cento dos cidadãos a votar eletronicamente.
O desconforto de muitos cidadãos face ao mundo da eletrónica, e são muitos mais do que normalmente se imagina, coloca sempre o risco de transformar o sistema eleitoral (dirigido à participação em igualdade do cidadão mínimo) num sistema a tender para o censitário – os mais qualificados participam, os outros que se amanhem.
Mas a questão central é mesmo a questão da confiança no sistema: temos um sistema em que a população confia, valerá a pena substituí-lo para ganhar algumas facilidades adicionais?
Face à crescente complexificação social e legislativa, considera que o modelo de plenário pontual da CNE responde com eficácia às necessidades?
O modelo provou ser equilibrado e tem respondido a um quadro crescente de solicitações. Não é o número de pedidos de intervenção ou a sua diversidade que gera qualquer tipo de entropia. Também não é a periodicidade dos plenários – não fora a indisponibilidade de alguns membros e nada obstaria a que a CNE reunisse diariamente se e quando necessário. Além disso, a CNE criou mecanismos de decisão que permitem agilizar as respostas.
A atividade da CNE é estipulada pela Lei n.º 71/78. Em 41 anos muito mudou e embora as competências e atuação da CNE constem de diferentes diplomas, a Lei base não mudou. Na sua opinião, e face às diferentes propostas de Lei que já foram submetidas, o que tem dificultado a aprovação de um novo diploma?
A lei da CNE é uma lei eleitoral – foi no exercício dos seus poderes exclusivos para legislar neste domínio que a Assembleia da República a aprovou. E, como sabe, as leis eleitorais são leis para-constitucionais, com um núcleo duro em que se reclamam maiorias idênticas às necessárias para alterar a Constituição.
Mesmo para quem considera que a lei da CNE não faz parte do núcleo essencial dos limites ao poder legislativo decorrentes do artigo 113.º da Constituição, não se espera que a sua alteração se faça sem consensos alargados. E, diga-se, se a CNE, por vezes, cumpre menos bem a sua função, o obstáculo nunca foi a lei. :