Reportagem sobre o Departamento de Armas e Explosivos da PSP
Licença para disparar
Departamento de Armas e Explosivos da PSP
São aos milhares, ali, divididas entre estantes, armários ou já nos contentores azuis onde caem desmaiadas para o fim iminente. De cima, as luzes irrompem nuns quantos reflexos de prata por entre um negro dominante. O ambiente é pesado, talvez também porque o ar é um pouco mais rareado. Estamos no subsolo, numa área restrita e de segurança máxima. É a partir daqui, do depósito de armas, que partimos à descoberta das operações do Departamento de Armas e Explosivos da Polícia de Segurança Pública.
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Espingardas, caçadeiras, carabinas, pistolas ou revólveres. Das conhecidas Kalashnikov AK-47, Hecker & Koch G3, Winchester, Colt, Baretta ou Glock passando pelas artesanais, vão desde o calibre 5.5mm de uma Velo-Dog ao calibre 50 do armamento dos carros de combate na Segunda Guerra Mundial. As armas que repousam no Arquivo do Departamento de Armas e Explosivos (DAE) da Polícia de Segurança Pública (PSP) têm as mais diversas origens. Só em 2018, foram apreendidas cerca de nove mil e entregues a favor do Estado mais de 20 mil. Além destas, o depósito guarda as armas que são alvo de peritagem e, até há bem pouco tempo, até penhoradas existia. Em 2017, por exemplo, o DAE leiloou 250.
“Todas as armas que sejam apreendidas, declaradas perdidas a favor do Estado ou entregues voluntariamente pelo cidadão têm que passar para as mãos da PSP”, começa por explicar o Superintendente Pedro Moura, Diretor do DAE, indicando que, qualquer que seja a entidade responsável pela apreensão – PJ, GNR, SEF, ASAE ou outra –, no final do processo, todas as armas ficam ao cuidado do DAE e vão para o arquivo, onde lhes será traçado um destino.
“As armas apreendidas e entregues a favor do Estado são, depois, analisadas uma a uma”, explica o Superintendente Pedro Moura, enquanto refere que há sempre uma perícia para aferir se foram utilizadas, quais as suas características e o estado de conservação. Não existindo qualquer problema, poderão ser afetas às forças de segurança, militares ou à formação. Mas geralmente esse não é o caso. “A esmagadora maioria corresponde a armas já velhas, em mau estado, sem qualquer interesse económico, científico, histórico ou operacional e, portanto, é destruída.” São essas armas que caem nos contentores azuis, à espera de ficarem cheios para partirem rumo a uma de duas empresas que, sob o olhar atento do DAE, selam a destruição. Desde 2016 que o número de armas de fogo destruídas vem crescendo. E, se em cinco anos, mais de 126 mil conheceram o fim, só em 2018, a PSP destruiu perto de 36.500 armas de fogo, a que acrescem quase mil armas brancas.
“Todos os anos, passam por aqui dezenas de milhares de armas e milhões de munições”, afirma o Superintendente Pedro Moura. Saber onde está cada uma é fundamental. Por isso, tudo está numerado e cada movimento é registado informaticamente. As armas de maior calibre ficam à direita, nas estantes abertas, separadas por tipologias. Já as mais pequenas escondem-se nos armários dos arquivos à esquerda. É preciso encontrar tudo rapidamente, para não comprometer a eficiência. Afinal, há armas que estão de passagem. É esse o caso das que são deixadas pelos proprietários para peritagem e que, depois de realizadas, lhes são devolvidas.
Muito embora as atividades do DAE passem eminentemente pelo controlo, licenciamento e fiscalização de todas as atividades relacionadas com armas e explosivos – desde o fabrico dos artigos à sua importação e transferência no espaço europeu, passando pelo armazenamento, comércio, transporte ou pelos proprietários e ambientes onde são utilizadas –, há uma competência paralela que se revela com a entrada de um elemento do DAE vestido com uma bata branca…
No rasto da pista
Por entre os corredores estreitos do depósito principal – existe um secundário com menos uso –, algumas armas, sobretudo do espólio das apreensões feitas pelas autoridades, teimam em manter escondido o caminho percorrido. São recolhidas por agentes que trocaram os uniformes convencionais pelas batas brancas, o terreno pelo laboratório. Munidos de conhecimento e apoiados por tecnologia de ponta, são eles que lhes vão reconstruir o passado.
“Este departamento tem um núcleo muito importante, que é o Centro Nacional de Peritagens”, revela o Superintendente Pedro Moura, explicando que, neste âmbito, a PSP divide competências com a Polícia Judiciária (PJ). “A Lei de Investigação Criminal diz que os crimes cometidos com recurso a arma de fogo são da competência da PJ, o que quer dizer que, num local de um crime onde tenha havido um disparo, a gestão é feita pela PJ. No entanto, há outros crimes em que estão envolvidas armas e em que não houve recurso a essas armas. Nesses casos, a PSP tem não só a competência, como agora também tem os meios humanos e materiais para poder fazer a análise”, diz, com visível orgulho, o Diretor do DAE.
“Fizemos um investimento muito grande, que começou em 2014 e para o qual conseguimos cofinanciamento da União Europeia”, prossegue o Superintendente Pedro Moura, desvendando que, há três anos, o DAE criou uma lista nacional de peritos de armas e munições da PSP. O processo foi acompanhado pela Procuradoria-Geral da República e culminou num conjunto de três cursos de formação. Hoje, os elementos da PSP aprovados constituem a lista nacional de peritos e só eles fazem peritagens às armas que passam pelo DAE ou pelos Núcleos de Armas e Explosivos existentes em todos os 20 Comandos territoriais da PSP. O Comissário José Pereira, Coordenador do Centro Nacional de Peritagens, é um destes peritos e é com ele que entramos por mais uma porta trancada a sete chaves…
As paredes insonorizadas no corredor antecipam que este é um espaço diferente… Atravessando, chegamos a uma sala onde a parca iluminação nos obriga a pousar imediatamente o olhar num tanque de água. “Este é o nosso banco de testes”, anuncia o Comissário José Pereira. “É aqui que disparamos as armas para depois recuperarmos e analisarmos os invólucros.” No tanque são disparadas balas de revólver e pistola. O mote é dado. “Fogo!” E a bala rasga a água a uma velocidade que nem as câmaras conseguem acompanhar, num estrondo que as proteções dos ouvidos abafam, mas não ocultam.
Ao lado, há um bloco gelatinoso que simula os tecidos moles e a resistência do corpo humano. Também ele recebe balas, para se medir a perfuração e recuperar projéteis sem estarem danificados. “Falta aqui um equipamento para dispararmos as caçadeiras. Vem dos Estados Unidos da América e deve chegar até ao final do ano. Aí estaremos totalmente equipados”, revela o Diretor do DAE, encaminhando-nos para a sala adjacente.
Na oficina, desativam-se armas, fabrica-se a gelatina que dará o corpo às balas e, por via de um processo químico, tornam-se visíveis números de série, apagados pelo tempo ou pela vontade de não deixar rasto. “Quando o número foi gravado, as moléculas da arma foram agrupadas nesse local. Mesmo quando deixamos de ver à superfície, lá por baixo, as moléculas continuam agrupadas. Através de ácidos conseguimos fazer sobressair o agrupamento”, explica o Comissário José Pereira. “Depois, fotografamos o resultado.” E, havendo necessidade de renumerar, a oficina contempla também uma máquina de gravação a laser.
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Investigação Criminal
Os elementos reunidos no subsolo viajam de seguida, através de elevadores reservados, até à superfície. Aqui, existe um laboratório que nos remete de imediato para um dos cenários da famosa série norte-americana de investigação criminal CSI. O espaço é amplo, de um branco dominante e com diferentes postos, claramente delimitados pelos equipamentos tecnológicos. “O espaço aberto é uma vantagem. Há uma complexidade enorme no processo. Às vezes o material apresenta dúvidas, não tem marca, modelo ou calibre e nós temos que fazer vários testes e discutir. Se estivermos em gabinetes individuais, não trocamos impressões”, assume o Comissário José Pereira.
Um dos principais objetivos é perceber se as armas que ali chegam já foram utilizadas em contextos de crime. Nessa missão, o IBIS, equipamento da INTERPOL, dá uma ajuda imprescindível. “Os invólucros das armas disparadas lá em baixo são colocados dentro da máquina, a partir da qual obtemos imagens a três dimensões e em alta definição”, explica o Superintendente Pedro Moura, esclarecendo que há marcas microscópicas únicas que são deixadas por cada arma. As imagens capturadas ficam guardadas numa base de dados e são transferidas para o “Match Point”, que vai fazer uma busca automática de semelhanças com amostras recolhidas em processos anteriores.
“Não é como nos filmes, em que o sistema faz tudo sozinho. É preciso dominar a tecnologia, ter conhecimento e uma sensibilidade que vem com a experiência. Entramos num patamar para lá do técnico, que é o da perícia”, desvenda o Comissário José Pereira. “O sistema apenas nos dá os processos com parecenças. Depois temos que analisar cada um em detalhe. Por isso, a experiência do perito é muito importante.”
A primeira correspondência ocorreu em 2018 e está eternizada num poster na parede. “Uma arma apreendida pela GNR veio para o DAE para ser examinada e, ao ser colocada no sistema, coincidiu com dois crimes de roubo em investigação na PJ”, recorda com satisfação o Superintendente Pedro Moura. Conforme revela, os sistemas de informação e as novas tecnologias têm sido uma aposta estratégica do DAE, que, por esta via, tem otimizado e aumentado a eficiência nas diferentes das operações que realiza. “Tentamos fazer apelo a todas as novas tecnologias de maneira a sermos mais eficientes, mais eficazes e, sobretudo, a racionalizar e automatizar processos.” Pretende-se tornar o sistema cada vez mais inteligente e autónomo, sobretudo na perspetiva de que há uma tendência para que a PSP vá perdendo efetivos ao longo dos anos. “Estamos a tentar criar um sistema o mais eletrónico possível, mantendo um controlo muito eficaz sobre as armas.”
Hoje a eletrónica já domina grande parte dos processos. Aliás, o DAE deverá estrear em breve a segunda versão do RIDAP – Repositório de Informação Digital sobre Armas e Proprietários, um arquivo eletrónico que pressupôs a digitalização de mais de um milhão e meio de fichas em papel referentes ao cadastro de armas e proprietários, datados do início do século XX (1920), numa desmaterialização que veio acelerar sobremaneira os frequentes processos de consulta ao histórico, antes bastante demorados e penalizadores das atividades da PSP que deles dependiam para prosseguir. Além disso, a informação do RIDAP é disponibilizada no SIGAE – Sistema Integrado de Gestão de Armas e Explosivos, plataforma que veio agilizar os processos de licenciamento. Para este mesmo fim contribuiu também a entrada em vigor, em 2015, de uma norma que obrigava os cidadãos, no momento da renovação da licença, a mudarem os seus livretes dos modelos antigos para os novos, semelhantes ao cartão de cidadão. A medida teve ainda a vantagem de contribuir para a entrega voluntária, por parte dos cidadãos, de milhares de armas. “À data, o novo livrete tinha um custo de cerca de 24 euros. Imagine um caçador que vinha renovar a licença e tinha dez armas – aliás, grande parte das licenças que emitimos são para a prática venatória e estimamos que, neste momento, existam 160 mil licenças ativas de caça. Para além do custo da própria renovação, ainda tinha que pagar mais 240 euros para a troca dos livretes. As pessoas começaram a fazer uma seleção das armas que tinham e a entregar as que já não utilizavam. Isso trouxe um aumento efetivamente muito grande em termos de entregas de armas.”
A nova Lei das Armas
Toda esta informatização e partilha de dados vêm também dar cumprimento a um desígnio europeu. “A União Europeia tem feito muitos esforços para que todos os Estados-Membros consigam ter sistemas de informação automáticos. Aliás, a última diretiva comunitária vem obrigar a que todas as administrações estejam ligadas entre si”, esclarece o Superintendente Pedro Moura, apontando para a entrada em vigor, a 22 de setembro, da nova Lei de Armas (Lei n.º 50/2019, de 24 de julho), que integra as premissas da Diretiva (UE) 2017/853.
Assim, em setembro, a PSP passou também a estar ligada ao Sistema de Informação do Mercado Interno (IMI), onde coloca agora todas as autorizações de transferência que faz a nível europeu para armas de fogo. “A nova versão da lei deu também um prazo de dois anos para que todos os armeiros se liguem à PSP. A ideia é que toda a informação flua, de forma eletrónica e automática. Assim, uma arma que seja encontrada ou que tenha sido utilizada em crimes, como foram as dos primeiros atentados em Paris, poderá ser rastreada, saber-se-á de onde veio e qual foi o seu percurso.”
A nova Lei das Armas, que veio limitar o número de armas que se pode ter em casa e estabelecer um conjunto de condições para a sua guarda, prevê também um período transitório de dez anos para a resolução de situações relacionadas com armas que já não tenham a afetação para a qual foram adquiridas e que, anteriormente, ficavam afetas ao domicílio, naquele que se consubstanciava como o segundo maior número de licenças emitidas pelo DAE. E, à semelhança do que aconteceu em 2006, data do anterior diploma, a nova lei contempla também um período de seis meses para as pessoas poderem fazer a entrega voluntária de armas que tenham sem serem manifestadas, sem que haja qualquer penalização criminal. “Deparamo-nos com muitas pessoas, no caso das habilitações de herdeiros, que nos 90 dias subsequentes à morte ou à descoberta da arma não a legalizam ou com cidadãos que deixam caducar as licenças e mantêm as armas”, contextualiza o Superintendente Pedro Moura, esclarecendo que esta é uma oportunidade para a regularização livre de procedimento sancionatório.
“A lei traz um conjunto grande de alterações, o que vai obrigar a uma adequação, quer por parte da administração central, através da PSP, quer dos administrados, ou seja, dos cidadãos, no sentido de se cumprirem as normas.”
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A responsabilidade do Solicitador e do AE
No que ao cumprimento da Lei diz respeito, também os Solicitadores têm um papel a desempenhar, designadamente no que concerne a uma crescente sensibilização para o tema no decorrer de processos ligados ao Direito Sucessório. “A própria Lei das Armas tem um artigo específico que regula a transmissão das armas no denominado processo mortis causa. A figura principal é o ‘cabeça de casal’, que poderá decidir o que fazer às armas da pessoa falecida: pode fazer a transmissão para ele e ficar com as armas na sua propriedade, pode fazer a sua transmissão para terceiros ou pode simplesmente entregar as armas gratuitamente a favor do Estado. Poderia também, na versão anterior, colocá-las em detenção no domicílio, o que deixa agora de acontecer. Outra hipótese, para casos em que existe um valor sentimental e quando outra alternativa de licenciamento não existir, é a desativação da arma”, esclarece o Diretor do DAE, indicando que esta inutilização irreparável passa a ser feita pelos armeiros e, para ser válida, tem de ser certificada pela PSP. De qualquer forma, quer seja uma arma desativada ou uma réplica, o registo é sempre obrigatório. Sendo importante esclarecer o cidadão a respeito das alternativas, não menos relevante é agir de forma preventiva, pelo que, aquando de uma habilitação de herdeiros, deve-se ter em conta a possibilidade de existirem armas. E, caso existam dúvidas, o DAE poderá ajudar a dissipá-las com uma consulta às suas bases, bastando enviar um e-mail nesse sentido.
Os cuidados estendem-se, de acordo com o Superintendente Pedro Moura, ao Agente de Execução: “Já tivemos algumas situações em que o Agente de Execução, durante a penhora e de boa-fé, acaba por levar armas porque precisa de aferir o valor de venda.” A ação pode ser problemática, porque mesmo o porte e o transporte carecem de licenças.
A nova legislação veio também determinar mudanças na promoção da venda. “Anteriormente, estas armas penhoradas eram-nos entregues para serem vendidas no leilão anual que a PSP fazia, sendo que o dinheiro era transferido para a conta do Agente de Execução, deduzidos uns custos mínimos relativos ao processo. Com esta lei, a PSP perdeu essa competência de fazer os leilões e colocou-se a questão de saber o que fazer às armas que estão em processos de insolvência ou de execução. A solução encontrada foi que essas armas seriam vendidas por armeiros do tipo 2”, avança o Superintendente, indicando que estes terão de promover a venda e estabelecer a entrega do dinheiro aos Agentes de Execução, “em moldes que terão de ser acordados entre ambos”.
Com um novo quadro legal em vigor, o Diretor do DAE deixa o conselho: “Se tiverem alguma dúvida ou se souberem antecipadamente que existem armas envolvidas em processos, questionem-nos. Se forem ações de execução durante as quais apareçam armas, deixem-nas ficar e contactem a PSP, que fará deslocar uma equipa ao local. Nós podemos ficar com as armas à nossa guarda, no nosso depósito, sendo que, obviamente, elas ficam dentro do processo e à disponibilidade desse processo.”
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