Entrevista a José da Mota Ferreira, Solicitador
“Mantive sempre em mim o sentido de Justiça”
José da Mota Ferreira
Nasceu em Arouca há 87 anos, mas foi em Oliveira de Azeméis que traçou o seu percurso de vida. Passou por Moçambique, foi oficial de justiça, escrivão, inspetor, tesoureiro, assistente social, tudo isto antes de se tornar Solicitador. E foi no seu escritório de sempre, naquele cujas paredes viram entrar avós, pais, netos, amigos e clientes ao longo de 45 anos de profissão, que José da Mota Ferreira nos recebeu para falar de histórias de outros tempos. E do sentimento de missão cumprida.
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O seu percurso profissional é vasto. Como é que, depois de ter desempenhado tantas funções, a Solicitadoria chegou à sua vida?
A Solicitadoria chegou à minha vida pelo sentido de Justiça que sempre me orientou. Cresci a saber que os meus antepassados haviam passado por situações injustas e erradas e isso sempre me marcou. Tinha também familiares ligados ao Direito, nomeadamente nos tribunais, o que me pode ter influenciado de alguma maneira. Mas o meu percurso começou pela Escola Militar. Ingressei, de seguida, no Ministério da Justiça, passei pelo notariado, pelos tribunais e acabei por ser nomeado oficial de justiça na comarca de Quelimane, em Moçambique. Aí estive alguns anos. Entretanto, desempenhei também funções como Secretário das Inspeções aos Tribunais, Cartórios Notariais e Conservatórias do Registo Civil, Predial e Comercial. Naquela época era o mais novo na Justiça e por mim passaram vários casos marcantes, como os relacionados com a emancipação feminina. Recordo que houve uma altura em que o país se debatia com a falta de colaboradores no serviço público, já que apenas os homens trabalhavam e a média de idades dos trabalhadores era elevada. Um dia, numa das inspeções, o meu superior perguntou-me como é que eu resolveria esse problema se tivesse poder para tal. A minha sugestão foi no sentido de se recrutar raparigas junto das escolas ou lançar um convite a nível nacional para que as mulheres ingressassem na função pública. Ele ficou muito aborrecido comigo. [risos] “As mulheres nem votar podem, fará trabalhar!”, ripostou. Acrescentei que a mulher é tão capaz de trabalhar como o homem e que assim o problema ficaria resolvido. E não é que, passado pouco mais de um mês, recebo um ofício do Ministério da Justiça a decretar a realização de um recrutamento nos mesmos termos que eu tinha proposto? Lançou-se um convite nas escolas e nas faculdades para que as senhoras pudessem ingressar na função pública e eu acabei por ser o responsável por realizar o primeiro exame às candidatas! Todas as que passaram por mim acabaram por entrar com muito bons resultados e eu fiquei extremamente orgulhoso.
Uns tempos depois – quando já desempenhava funções como escrivão – comecei a ter alguns problemas de saúde na mão direita. Foi nesse momento que decidi apostar na Solicitadoria. Em novembro de 1974, fiz o exame para ser Solicitador, no Palácio da Justiça do Porto, passei à primeira e, em janeiro do ano seguinte, já estava a exercer, exatamente neste mesmo escritório em que estou hoje, em Oliveira de Azeméis. Cerca de dois anos depois de começar esta nova atividade, ainda fui convidado pelo Ministro da Justiça para voltar a exercer funções públicas, nomeadamente para percorrer várias comarcas a fim de identificar problemas. Não aceitei porque tinha duas filhas pequenas e queria que elas fizessem um curso superior. Não seria com um pai ausente que elas o iriam fazer. E assim foi, continuei o meu trabalho como Solicitador e hoje tenho duas filhas e uma neta licenciadas em Direito, o que muito me alegra.
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Como foram os primeiros anos como Solicitador?
Os primeiros anos não foram difíceis, porque mantive sempre em mim o sentido de Justiça. O meu nome já era conhecido na região por causa da minha carreira nos tribunais e isso fez com que tivesse sempre clientes, mesmo no início da profissão. E, aquando a inscrição na então Câmara dos Solicitadores, mantive o nome profissional Mota Ferreira, pelo qual era conhecido. Creio que terei sido o primeiro Solicitador nesta comarca da região norte, daí o sucesso. Além disso, procurei ser sempre humilde, respeitador e educado, fosse com amigos, fosse com clientes. Ainda hoje há imensas pessoas que me procuram, aqui neste meu escritório de sempre.
Mas voltando à época em que me iniciei, recordo que nesses anos havia grandes problemas de direitos reais, sucessões e heranças. Tratei também de muitas licenças de rádio e de imensos processos para atribuição da pensão de sobrevivência, instituída pelo governante da altura, Marcello Caetano. Era preciso preencher um montão de papéis e as pessoas mais idosas – a maioria nem ler sabia – iam às repartições de finanças e às conservatórias pedir ajuda no preenchimento, mas ninguém ajudava. Então alguém lhes falou no meu nome e começaram a vir ao meu escritório. Começaram até a formar fila. E eu em poucos minutos resolvia-lhes o problema. Foi assim que me tornei ainda mais conhecido enquanto Solicitador: essas pessoas começaram a falar de mim aos amigos e aos vizinhos e a palavra foi-se espalhando. Isto também porque nunca cobrei um cêntimo a nenhuma delas. Essas pessoas eram tão pobres que precisavam do meu auxílio!
Foi esse o segredo para, mais do que clientes, fazer amigos?
Foi, sem dúvida, o melhor passo que dei: atender condignamente, com respeito e com muito carinho todas as pessoas que me procuravam. Era assim que eu também era tratado, portanto só era minha obrigação retribuir. Nestas já mais de quatro décadas, acabei por fazer muitos amigos, de várias gerações. Fui o Solicitador de famílias inteiras, desde o avô, ao pai e agora ao neto. Consegui juntar uma clientela incalculável. Cheguei até a trabalhar com vários advogados do Porto e de Oliveira de Azeméis. Todos eles tinham já bastante idade e eu era o mais novo na área do Direito. Como sabiam que eu já tinha bastante experiência, pediam-me para os ajudar em vários processos. Todos eles se tornaram grandes amigos.
Há algum episódio marcante no seu percurso profissional enquanto Solicitador que ainda hoje recorde?
Tenho várias histórias, mas há uma que me marcou e que ainda hoje recordo com especial carinho: um dia, no final dos anos 70, já passava da meia-noite e o telefone começa a tocar. Do outro lado da linha falava-me uma advogada brasileira do Rio de Janeiro. Contou-me que tinha em mãos o processo de uma partilha de bens de uma abastada família portuguesa de Oliveira de Azeméis, emigrada no Brasil. Em causa estava um importante e valioso património, que deveria ser dividido por uma dezena de filhos. A doutora pedia-me ajuda para resolver essa questão e o meu nome, explicou, tivera-lhe sido indicado por ser da zona e por ter experiência nessa área. Aceitei e, depois de me inteirar devidamente da situação, fiz um mapa de partilha. Dois dias depois, enviei-lhe o esboço via fax e, passados uns dias, a doutora telefonou-me e disse: “Sou advogada há 50 anos e nunca pensei que houvesse alguém que conseguisse resolver esta partilha. Já tínhamos tentado aqui no Brasil, já tínhamos tentado em Portugal junto de um advogado do Porto conhecido da família, sempre sem sucesso. E agora, depois de verem o seu trabalho, todos os irmãos aceitaram.” Foi, sem dúvida, das maiores e mais complicadas partilhas que fiz. Fiquei muito satisfeito por a conseguir resolver.
Quais são, na sua opinião, as características que um Solicitador deve ter?
O Solicitador deve ser honesto, diligente, responsável e deve estar permanentemente atualizado. Deve tentar resolver o conflito da melhor forma, de preferência evitando que este chegue aos tribunais. Há tantos mal entendidos que se resolveriam com diálogo e com pedidos de desculpa. Foi assim que sempre orientei o meu percurso. E são estes os conselhos que costumo deixar aos jovens que abraçam agora a profissão: devem ter sempre em mente os conceitos de honestidade, sinceridade e responsabilidade. São estes os pilares essenciais para quem quer ser um bom Solicitador.
Como é que é atualmente o seu dia a dia?
Tenho sempre assuntos pessoais para tratar [risos]. Continuo a vir até ao escritório, há antigos clientes, hoje grandes amigos, que ainda me pedem conselhos, porque sabem que estou inscrito na Ordem e continuo a interessar-me muito por tudo o que se relaciona com a Justiça. Leio muitos jornais, gosto de estar sempre a par da atualidade. E assisto com orgulho ao percurso de sucesso que as minhas duas filhas e a minha neta vão percorrendo. Sinto-me muito feliz por ver que seguiram os meus passos.
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